26 janeiro 2007

Lenda do Cabeço da Negra

Crónica das Mós

LENDA DO CABEÇO DA NEGRA

Quando me levantei, já o sol inundava a colina que eu avistava da janela do meu quarto. E ao convidar a minha avó para refazermos o trajecto que tantas e tantas vezes nos levara ao distante e saudoso Lameirão, tive que ouvir os seus reparos:
- A uma hora destas, com uns caminhos tão ruins...Que queres tu ir a fazer, homem?!
- Prometi a mim mesmo que havia de rever, hoje, esses montes, esses vales, esses arvoredos...
E com aquele sorriso, meio irónico, meio complacente, que tanto a caracterizava, ela rematou:
- Bem, só quem é preguiceiro sai a uma hora destas mas se teimas que havemos de ir hoje, avia-te, que daqui a nada, o sol abrasa este mundo e o outro.
Tinha razão, daí a meia hora, quando atacávamos a dura encosta da Selada, o sol rutilante dardejava as nossas costas com raios ardentes, tornando mais penosa a escalada da ladeira ablongada e pedregosa, através do tortuoso carreiro rasgado nas fragas, polvilhado do finíssimo e amarelado pó que se esfarinha da rocha xistosa em decomposição, depois de recozida em séculos de tormentosas tisneiras.
Vencido o Alto da Selada, entrámos no carreiro cavado no espinhaço que mergulha os sopés na margem direita do ribeiro, que já mal se avistava.
O caminho estreito, serpenteando na parte cimeira das encostas, oferecia-nos os sucessivos miradouros que nos permitiam observar a paisagem fresca e suave do vale, retalhado de hortas e de pomares, a contrastar com as encostas fragosas onde, tirante um ou outro amendoal, medrava o mato hirsuto, abundante de gaimões, iguais aos que eu muitas vezes colhera para construir viraventos e arados miniaturais.
Na outra banda do ribeiro, levanta-se outro rosário de montes, onde avulta o Alto das Seixas, a esconder as lendariamente gloriosas terras de Numão.
Para além da cordilheira de montes, vislumbravam-se os contornos da região das serras, a Terra Fria da Mêda e de Penedono que ladeia, a sul, este retalhado da Terra Quente.
Quando atravessávamos a ladeira que conduz à colina que se debruça sobre o Vale das Choisas, sentimos, mais intenso, o bafo quente da fornalha que se avizinhava e não tardou a ouvirmos o canto ciciado das cigarras. Mas, dobrado o cume do outeiro, deparou-se-nos o vale mergulhado numa deliciosa penumbra!
Os empinados serros que o ladeiam não permitiam a intromissão dos raios matinais do astro rei, e toda a paisagem parecia adormecida na silenciosa quietude da Natureza, somente entrecortada pelo canto mofeiro dum cuco e pelos melódicos e longínquos gemidos duma rola bravia.
Ziguezagueámos pela encosta abaixo em direcção ao vale, meta da nossa caminhada. Minha avó continuava rezando enquanto eu, absorto, ia admirando a paisagem fresca e matizada do vale que, gradualmente, se ia descobrindo: as hortas, os olivais e aqueles gigantescos olmos que são os eternos galarins dos rouxinóis, quando ensaiam maviosos solfejos.
Depois do Lameirão, o vale desce em socalcos até ao ribeiro que, embora mais próximo, de fundo, já se não avistava. À medida que nos aproximávamos da nossa horta, ia-se alargando a linha do horizonte que, prolongada no vale do ribeiro, se estendia para Sw, acabando por vislumbrar a ponte do Torrão.
Para além da ponte, adivinhava-se o sulco sinuoso do Douro, separando o cenário de presépio, do perfil escarpado e severo da penedia transmontana que se eleva até às nuvens.
A alcantilada serrania apresentava-se como o mais caótico dos panos de fundo. Os córregos, as ravinas e os desfiladeiros, cortam e retalham os dorsos de bronze, onde apenas alveja o casario do Seixo de Ansiães, caprichosamente alcandorado no ciclópico fragaredo.
Antes de mergulharmos definitivamente no vale, detive-me numa curva do carreiro para uma derradeira contemplação dos largos e variados horizontes que dali se desfrutavam.
Deslumbravam-me as intensas tonalidades e os fortes contrastes de luz e sombra. E os montes, com a sua orientação transversa à cadeia de serranias, faziam-me lembrar rebanhos de filhotes a fugir, espavoridos, em busca da protecção da mãe.
O bucolismo enternecedor do vale, o travo melancólico da paisagem e a carga das recordações que me acudiam ao pensamento, produziam a força metafísica que impelia o meu espírito para a busca do secreto néctar da compreensão para tão avassaladoras explosões telúricas. E nesses momentos sentia, efectivamente, o mais cristalino prazer de viver.
Vendo que eu não distraía a vista do encanto da paisagem, minha avó abeirou-se de mim e, apontando-me o horizonte apocalíptico, disse-me:
- Repara que no meio daqueles serros negros um deles tem parecenças com uma gigantesca cabeça humana...Vês?
- Vejo, vejo.
- É aquele que o povo chama “o Cabeço da Negra”...
Como quem acorda dum sonho, abstraí-me do fascínio da paisagem e preparei-me para reviver o encanto dos momentos passados, quando minha avó contava os seus infindáveis e fantásticos contos, quase sempre de feição moralizante. Despertava dum sonho e mergulhava noutro.
“Há muitos, muitos anos, um pastor guardava o gado no cimo daquele monte. E, para fugir à torreira do sol, abrigou-se à sombra dum empinado fragão.
Quando se deliciava com a frescura da sombra, ouviu uns abafados gemidos, vindos das profundezas do fragaredo, que o fizeram fugir, espavorido, para bem longe. Mas, pouco depois, espicaçado pela curiosidade, resolveu regressar e meter-se no meio das fragas.
Avançando com mil cautelas, ia revolvendo algumas pedras, com a ponta do cajado e não tardou a descobrir um buraco que era, nem mais nem menos, a entrada para uma gruta cavada no interior do lapedo. Voltou a amedrontar-se, mas a curiosidade crescente redobrou-lhe a coragem e acabou por se encafuar na caverna.
Quando tinha os olhos mais afeitos à escuridão que reinava no interior da gruta, pôde ver um vulto humano estiraçado na lagedo. Novamente a cobardia o assaltou mas, quando fazia tenção de se retirar, ouviu um fiozinho de voz que implorava:
- Pastor, estou a morrer de sede. Corre a buscar-me uma pouca de água e, se chegares a tempo de me salvares a vida, farei de ti o mais rico dos homens.
E viu então uma velha muito mirrada que, enquanto falava, ia revolvendo com as mãos esqueléticas um montão de luzidias peças de oiro.
Aturdido com tamanha fortuna, o zagal saiu da furna e desatou a correr pelas ladeiras alcantiladas em direcção ao rio. Chegado à borda do torrentoso caudal, só então deu conta que não trouxera vasilha para levar o precioso líquido. Sem perder tempo, tirou o chapéu da cabeça, encheu-o de água e atirou-se corajosa e denodadamente à difícil escalada de regresso.
Quando chegou à gruta, a velha já negra que nem um tição, de olhos esbugalhados e mãos estendidas, implorou que lhe chegasse aos lábios ressequidos a fresca água que trazia. Desgraçadamente, porém, nem uma gota dela continha já o arrombado chapéu e a pobre velha exalou o seu último suspiro à vista do esforçado pastor.
Ganancioso, procurou, febril, o tesoiro que duas horas antes vira entre as mãos encarquilhadas da velha. Mas nem uma só peça encontrou. E então, desditoso, chorou amargamente a sua desgraça, pois continuaria pobre como sempre fora.
Quando sentiu algum alento, reuniu as ovelhas tresmalhadas e regressou à sua aldeia para contar a grande aventura que tinha vivido naquela tarde.
A história correu de boca em boca, na madrugada seguinte, juntaram-se os homens mais afoitos da povoação que, munidos de picões, alavancas e outras ferramentas, partiram para o monte, na companhia do pastor, esperançados em descobrir o fabuloso tesoiro. Mas apesar de muito escavarem e rebuscarem, nem vestígios da velha encontraram.
E, desde então, ficou a chamar-se àquele serro o Cabeço da Negra.”

José Gomes Quadrado
Publicado em “Notícias de Freixo de Numão”, Fevereiro de 1999.

Comments:
Ao navegar no Blog "Das Mós" deparei com A Lenda do Cabeço da Negra.Grande imaginação,riqueza de termos e uma maneira simples e humilde de contar a história a uma criança. Estão de Parabéns o Carlos Pedro e o José Gomes Quadrado.Continuem a nos mostrar a vossa sensibilidade.
 
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