14 dezembro 2008

Natal (dos humildes)

NATAL

Esta história remonta à última década do século III, altura em que o governo do Império Romano estava repartido por quatro imperadores, formando uma “tetrarquia”, no topo da qual estavam os imperadores Diocleciano e Maximiniano que, ciosos em preservarem os valores tradicionais do paganismo, moveram a mais longa e impiedosa perseguição a todos os que se convertiam ao cristianismo. Aos convertidos viriam a juntar-se os irmãos Crispim e Crispiniano, dois jovens que apesar de pertencerem a uma família nobre romana foram igualmente acossados pelos soldados daqueles imperadores. Perseguidos sem tréguas nem repouso, depois de se terem escondido em várias localidades e de terem aprendido e desempenhado o ofício de tamanqueiro, viram-se obrigados a fugir para mais longe, acabando por encontrar refúgio em Soissons, no norte da Gália (actual França). Quando ali chegaram, o facto de fazerem tamancos ou socos ajudou-os a integrarem-se melhor no seio da respectiva comunidade, pois para além de lhes servir para sobreviverem, trocando com os vizinhos tamancos com os indispensáveis produtos alimentares, a troca e partilha de bens essenciais serviriam também para os dois irmãos ganharem a confiança da população local, porque alimentavam a intenção de virem a pregar o Evangelho. Resolveram dar início a este desígnio no penúltimo dia do “Natalis Solis Invictus” ou “Festa do Solstício da Luz” (um dia correspondente a 24 de Dezembro). Recordando uma penosa experiência, saíram de casa ao cair da noite, e foram bater à porta do casebre mais arruinado da povoação, onde viviam uma pobre viúva e o seu filho Fábio, com apenas 9 anos de idade. Quando ali chegaram, mãe e filho ficaram muito surpreendidos com a visita dos dois artesãos que vagamente conheciam. Após alguns segundos de silencioso espanto, a pobre mulher convidou-os a entrarem para junto da lareira, ao mesmo tempo que, exteriorizando a sua estranheza, ia dizendo: - Havendo por aí tantas casas onde se festeja esta noite o nascimento do “Solis Invictus”, o que vos trouxe aqui, a esta triste choupana, onde só há pobreza e luto? - Vimos cá para cearmos convosco e para vos falarmos do mais importante nascimento acontecido à superfície da Terra. O nascimento de Quem trouxe a verdadeira luz que deve iluminar a alma de todos nós. Dito isto, retiraram dos bornais alguns mantimentos, depois colocaram pinhas em redor da fogueira para com o calor abrirem, e delas retirarem alguns pinhões que viriam a servir de sobremesa à refeição frugal. Acabada a ceia, Crispim passou a contar o que sabia sobre o nascimento de Jesus. “Há quase 300 anos, o imperador César Augusto decretou o primeiro recenseamento do Império Romano. E para que ninguém fosse contado duas vezes, o decreto obrigava todos os chefes de família a apresentarem-se na terra de origem das respectivas famílias. Nessa altura, muito longe daqui, numa terra chamada Nazaré, no distrito da Galileia, vivia abençoado pelo Senhor o casal Maria e José. Ela que aguardava para breve a hora da sua maternidade, viu esta serena espera perturbada por aquela ordem imperial, porque José, pertencendo uma família originária de Belém, no distrito da Judeia, era obrigado a deslocar-se a esta cidade para proceder ao seu registo. E assim, nos últimos dias da sua gravidez, Maria haveria de percorrer 815 “stadiums” (cerca 150 quilómetros) de péssimos caminhos, num incómodo jumento, enfrentando as inclemências do tempo, para que se cumprisse a professia de Miqueias:

E tu, Belém chamada Efrata, Posto que pequena entre milhares de Judá, De ti sairá o que há-de ser Senhor de Israel."

Quando chegaram a Belém Maria sentiu as primeiras dores do parto, o que os levou de imediato a procurar abrigo. Mas devido à grande afluência de forasteiros não encontraram lugar em qualquer estalagem ou hospedaria. Percorrendo a cidade de lés a lés, entraram numa crescente angústia porque se aproximava a hora do parto e não tinham encontrado quem os quisesse ou os pudesse receber. Foram então procurar abrigo nos arredores de Belém. Depois de muito a caminharem, encontraram uma hospedaria na orla duma estrada. José entrou na estalagem através duma sala ampla que estava coalhada de gente que dormia deitada no sobrado, embrulhada em mantas surrentas e nos mais variados tipos de agasalhos. Lançou um olhar de preocupação por toda a sala e viu, entre adultos de ambos os sexos e de diversas idades, crianças que dormiam e outras que choravam. E viu num canto da sala o estalajadeiro acompanhado de alguns mercadores e viajantes grosseiros que se entretinham a jogar. Dirigiu-se ao hospedeiro e perguntou se lhe podia alugar um sítio onde houvesse maior tranquilidade, porque não podendo expor a mulher prestes a dar à luz à promiscuidade daquela sala, preferia um lugar sossegado que garantisse uma serena intimidade, mesmo sacrificando a comodidade. O estalajadeiro respondeu-lhe que, com tais condições, só tinha um estábulo, situado numa gruta cavada no sopé da colina das traseiras, onde recolhia uma vaquinha. Depois de ter pedido ao hospedeiro para lhe mostrar o estábulo, José saiu para a berma da estrada e aproximou-se de Maria para lhe contar o que observara na hospedaria e a conversa que tivera com o proprietário. Ela teve um gesto de assentimento e ambos se dirigiram na direcção do estábulo subterrâneo. Maria parou no limiar da caverna e à luz do lampião que o estalajadeiro segurava, viu que o único sítio limpo no interior do estábulo era a manjedoura. E ao ver quão humilde era o aposento reservado ao Filho que estava para nascer, tão amargurada ficou, que os seus olhos acabaram marejados de lágrimas e o seu coração amoroso sentiu a dor mais preciosa do mundo! Mas não tardaram a acudir-lhe razões que, iluminando o seu entendimento, a levaram a compreender e a aceitar aquela extrema humildade e pobreza. José apressou-se a cobrir a manjedoura com um braçado de palha enxuta. Depois saiu para aquecer uma pouca de água numa fogueira que acendeu à entrada da gruta. E ali ficou a meditar, com os ouvidos atentos aos gemidos de Maria que, em voz baixa, apelava directamente para o Senhor. Desassossegado, observava com preocupação as redondezas da gruta. Se tivesse erguido o olhar, teria visto a crescente proximidade de uma estrela grande e brilhante. Mas não. Apenas o balir das ovelhas na colina despertaram a sua atenção e só a proximidade dos pastores o preocupava. De súbito, a caverna ficou toda iluminada com um clarão tão vivo que o deixou assombrado. E só depois ouviu que Maria chamava por ele. Aproximou-se com a água que aquecera e ficou a olhar enternecido o primeiro banho do Deus-Menino. E quando Maria O envolvia em faixas e reclinava na manjedoura, José afagou a pequenina cabeça de Jesus com as mãos calosas de carpinteiro que era. Os pastores da colina ficaram alvoraçados com rutilante luminosidade da estrela e comentavam entre si o fenómeno, quando tiveram a visão dum anjo do Senhor. Cheios de assombro caíram por terra e cobriram as cabeças com mantas. Mas não tardou que ouvissem a voz do anjo que lhes disse: “Não tenhais medo, pois que venho dar-vos uma grande alegria: Nasceu-vos hoje um Salvador, que é Cristo, o Senhor, nesta cidade de David. E eis o que vos servirá de sinal: numa gruta situada no sopé desta colina, encontrareis um menino deitado numa manjedoura.” E com a voz do anjo, ouviram uma multidão de vozes que louvavam ao Senhor, cantando:

“Glória a Deus nas Alturas E Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade."

Depois de Maria vestir a Jesus as roupinhas de algodão e de linho que Ela própria confeccionara, ouviram-se vozes no exterior da gruta: eram os pastores! Excitados como estavam, falavam todos ao mesmo tempo. E José, que tudo quanto queria era estar sozinho com a família, preparava-se para lhes dizer que se calassem para que a esposa e o Filho pudessem descansar. Mas ficou maravilhado com o que ouviu da boca deles e correu a contá-lo a Maria. Ela olhou o Filho, conservou todas estas coisas e meditou-as no seu coração... Maria pediu a José que deixasse entrar os pastores. E aqueles homens de peles tisnadas, ao depararem com o Salvador, ajoelharam, inclinaram as frontes e, recolhidamente, veneraram o Deus Menino. Depois de tudo o que ouviram e viram, regressaram cheios de alegria e esperança, porque nascera o verdadeiro “Sol da Justiça”. - Um Sol que deverá iluminar o coração de todos nós - acrescentou Crispim. Tinha acabado a narrativa, mas o serão e a presença dos dois irmãos só terminariam depois do rapazinho ter adormecido. Na manhã seguinte, quando o Fábio chegou junto à lareira, deparou ali com um pequeno par de tamancos. O seu júbilo foi enorme, porque com a prenda oferecida pelos mensageiros do Menino Jesus passaria a andar calçado como os meninos afortunados.

Algés, Dezembro de 2008 José Gomes Quadrado


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