19 novembro 2007

REGRESSO

Pouco passava das 10 horas daquela manhã do princípio do Verão de 1951 quando embarquei em Campanhã no semi-directo da linha do Douro, que tinha Barca D`Alva como estação terminal. A composição, rebocada por uma pesada máquina a vapor, depois de percorrer cerca de 8,5 Kms, efectuou a sua primeira paragem em Ermesinde. Logo a seguir, inflectindo para Leste, passou a marchar na via única da linha do Douro e minutos depois efectuou nova paragem em Valongo. Na plataforma da estação, vendedeiras com cestas enfiadas nos braços, apregoavam: - Quem quer regueifa! – Como sempre, não faltaram compradores, tal como em estações seguintes, onde ouvi apregoar: - Água e bilha, 15 tostões! - Todos estes pequenos negócios faziam-se nas janelas das carruagens. Em Penafiel, reencontrei, também, a idosa pobre e cega que (da berma da estrada que dava acesso à estação) através duma repetida cantilena, implorava aos passageiros que lhe deixassem a esmola na plataforma.
Minutos depois, o comboio chegou à estação de Caíde (o ponto mais alto da linha) e logo à saída atravessou o longo túnel deste nome. Depois das estações da Livração e do Marco de Canavezes atravessou outro ainda mais comprido, o túnel do Juncal, que com os seus 1622 metros é o maior de todos até à Barca D`Alva e o segundo mais extenso do País. No seu contínuo descer, a linha conduziu a composição ao encontro do mais belo rio do mundo: o Douro. Com efeito, depois da Pala e já perto de estação de Mosteirô, a via torna--se vizinha do Douro. E com o comboio a marchar juntinho à margem direita do Rio, eu, pela centésima vez, passei o resto da viagem de pé, ligeiramente debruçado na janela, usufruindo, com crescente deslumbramento, paisagens inolvidáveis!
Com andamento acelerado o comboio ia parando apenas nas estações principais. Nas proximidades de Barqueiros o granito deu lugar ao xisto e começaram a aparecer os primeiros vinhedos da “Região Demarcada do Douro”. Numa larga curva do Rio avistei o Peso da Régua e as suas duas pontes. Na estação o comboio fez uma paragem que durou o tempo necessário para o almoço e para a locomotiva ser abastecida de água.
Cerca de 30 minutos depois, a composição retomou a sua marcha, transpondo a ponte sobre o rio Corgo, no ponto onde ele desagua no Douro. Aqui a via estreita que levava o comboio até Vila Real e Chaves separa--se da via larga, e esta continua a estender-se na margem direita do Douro. Na outra banda do Rio a velha estrada 222. Percorridos cerca de 10 Kms, o comboio parou no apeadeiro de Bagaúste e, 7 Kms adiante, chegámos à estação de Covelinhas. Aqui lembrei-me de que esta servia a aldeia de São Martinho de Anta, terra natal do grande Poeta e não menor Contista Miguel Torga. Sempre com os olhos postos na margem esquerda revia a Quinta dos Frades do grande capitalista Delfim Ferreira (Riba d`Ave) que, no Porto, passava por ser o homem mais rico do País; mais adiante, na mesma margem, funcionava uma fábrica de óleos vegetais. Durante a paragem na estação de Gouvinhas, fitei a foz do rio Távora. Lembro-me das paragens na estação do Ferrão e do apeadeiro de Chanceleiros, porque dali avistava as quintas de S Luís, da Boavista, a Quinta das Carvalhas...
Depois das pragas do oídio e da filoxera, quem passou a explorar estas e as outras ubérrimas quintas, avistadas até e depois da estação do Pinhão?
A partir da Régua, o comboio passara a parar em todas as estações e apeadeiros. Depois de S. Mamede do Tua, ao transpor o rio deste nome, ergui o olhar e avistei o perfil da ponte entre duas fragosas arribas da linha estreita do Tua. Logo a seguir, chegámos à estação que serve as duas vias. Aqui vi o acelerado movimento do pessoal e de passageiros que faziam o transbordo para o combóio que seguia até Bragança. E porque a paragem era demorada, ainda tive tempo de voltar a apreciar os belos azulejos com motivos regionais que sempre ornamentaram o frontispício desta, assim como os das estações do Pinhão e da Régua, entre outras.
A partir do Vale do Tua erguem-se íngremes e escarpadas penedias, no topo das quais tem início o planalto de Ansiães que se estende até ao Sabor. No sopé da serrania o comboio para continuar na vizinhança do Rio tem que atravessar pontes, viadutos e sucessivos túneis como o da Rapa, (com 45m de extensão), cavado na rocha viva do enorme “Penedo das Letras”, assim popularmente designado por nas suas entranhas existir uma gruta ornamentada com as chamadas “pinturas rupestres do Cachão da Rapa”. E depois duma breve paragem no apeadeiro da Alegria (vizinho da “Quinta do Guilhar”) e percorridos algumas centenas de metros, entrámos no ciclópico túnel da Valeira. Rasgado no mais duro granito dos alcantilados contrafortes do planalto de Ansiães. A possível visão daquela formidável explosão geológica só foi conseguida depois do comboio sair do túnel e descrever uma ampla curva, permitindo a avistar um cenário dantesco: a boca inteiriça do túnel e a “garganta” da Valeira, onde o torrentoso caudal corre estrangulado por entre milhões de toneladas de empinados fragões graníticos que na margem esquerda se erguem até 782metros de altitude. Lá no alto já antes eu avistara o santuário de São Salvador do Mundo.
A via-férrea entra no Douro Superior através duma longa mas pouco acentuada curva que se estende pela borda da água e que, então, umas centenas de metros adiante, levou o comboio atravessar o rio em diagonal para a margem esquerda, através duma estrutura metálica: a (antiga) ponte da Ferradosa, com 7 vãos, 5 dos quais com 57metros e 2 com 45 e com uma extensão total de 412,5metros.
Atravessada a ponte seguiu-se a paragem na estação de Vargelas. Depois, passámos 3 pequenos túneis, dois viadutos e atravessámos a ponte da ribeira da Teja, para logo a seguir o comboio parar no Vesúvio, apeadeiro construído para servir a quinta que lhe deu o nome: Vesúvio em vez da secular designação de “Quinta das Figueiras”.
Após a partida do comboio observei pela centésima vez o imponente e conservado chalé e apercebi-me, então, que este e outros edifícios da quinta com a sua cor branca contrastavam com a natureza envolvente. A seguir, na outra banda do Rio, adivinhava-se a povoado de Coleja e mais adiante, vi aparecerem vinhedos integrando um complexo designado “Quinta de Lobazim”. Depois o comboio atravessou a Ponte do Torrão*. Atravessada a ponte, o comboio entrou no lugar Freixo-Mós e centenas de metros adiante a composição parou, finalmente, na então designada Estação de Freixo de Numão.
Aqui desembarquei ansioso por chegar junto de quem e de tudo que me era muito querido. Este facto tornou menos penosa a caminhada através do ladeirento caminho rasgado no espinhaço do enorme monte Janvão. Depois da escalada de quase 3 Kms, atingi a “lajeosa” e altaneira Portela, onde, enternecido como sempre, avistei o casario xistoso das Mós e ouvi o eterno cantar dos galos. Segui pelo Ninho do Corvo e desci o declivoso Pombal para mais depressa chegar à Casa da Avó.

Beijos e abraços no termo de mais um regresso.

* Indevidamente designado “Viaduto de Murça”, porque ela atravessa a junção de dois ribeiros: um que nasce no sítio de Escorna Bois (em Freixo de Numão) e depois de passar junto à aldeia de Murça vai, a jusante, juntar as suas às também escassas águas dum outro que tem origem em Sobradais (no termo de Santo Amaro) e que atravessando a nossa povoação, toma o nome de ribeiro das Mós. Portanto, em meu entender, chamar-lhe Ponte do Torrão é que estará certo.

José Gomes Quadrado

Comments:
Um verdadeiro roteiro pela linha do Douro. Parabéns pela qualidade dos textos.
 
ZECA és o orgulho da família QUADRADO.
 
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