19 dezembro 2007

O Natal e o Sonho

O NATAL E O SONHO

Belém, outrora famosa entre as cidades da Judeia, não passava duma cidadela decadente, com pouco mais de duzentos fogos, quando o imperador César Augusto decretou o primeiro recenseamento do Império Romano. Para que ninguém fosse contado duas vezes, o édito imperial obrigava todos os chefes de família a apresentarem-se na terra de origem das respectivas famílias.
Maria que aguardava em Nazaré, na Galileia, a hora da sua maternidade, viu esta serena espera perturbada por aquela ordem imperial, porque José, pertencendo a uma família originária de Belém, era obrigado a deslocar-se a esta cidade da Judeia para proceder ao seu registo. E como se aproximavam os últimos dias da gravidez, o casal ficou perante a dúvida: se deveria ir ou se deveria ficar. Acabaram por resolver que acompanharia José, porque não convinha que ficasse sozinha em Nazaré. Mas as razões que originaram uma tão penosa jornada não eram só aquelas, mas outras havia e bem mais profundas.
Maria, já nos últimos dias da sua gravidez, haveria de percorrer 150 quilómetros de péssimos caminhos, num incómodo jumento, para que se cumprisse a professia de Miqueias:
“E tu, Belém chamada Efrata,
Posto que pequena entre milhares de Judá,
De ti sairá o que há-de ser Senhor de Israel.”

A caminhada longa e fatigante foi agravada pelas inclemências do tempo.
Logo que chegaram a Belém, Maria começou a sentir as dores do parto. E José, de imediato, procurou abrigo. Mas devido à grande afluência de forasteiros, não encontrou lugar em caravansarás ou em quaisquer outras hospedarias. E depois de percorrerem a cidade de lés a lés, batendo a várias portas, entraram numa grande angústia porque se aproximava a hora do parto e não tinham encontrado quem os quisesse ou pudesse receber. Resolveram então procurar abrigo nos arredores de Belém.
Eram já altas horas duma noite muito fria. As ruas, as ruelas e os caminhos estavam desertos. A cidade adormecera. A Lua, como um enorme lampião, deixava ver na penumbra os forasteiros que dormiam ao relento, enrodilhados em mantas e peles, debaixo de alpendres ou nos cantos mais abrigados. Maria e José caminhavam ao encontro duma hospedaria situada no termo duma correnteza de casas que se estendia na orla duma estrada. Depois das casas, ficava um terreno escalvado e pedregoso, onde o luar projectava as sombras de fragas empinadas. E as traseiras da hospedaria davam para o sopé duma colina que descia em socalcos, terminando numa pedreira calcária e num barranco de terra barrenta. Na encosta daquela colina pernoitavam alguns pastores e as respectivas ovelhas agrupadas, umas em currais de pedra solta, outras em grutas naturais. Ao longe, muito ao longe, na linha do horizonte, adivinhava-se a negra depressão do Mar Morto e lá no alto, junto às nuvens, divisavam-se as ravinas prateadas das montanhas de Moab.
José entrou na hospedaria. A vasta sala da entrada estava coalhada de gente que dormia estiraçada no sobrado, embrulhada em mantas surrentas e em farrapos; ao fundo, num dos cantos da sala, estavam o estalajadeiro e alguns mercadores e viajantes grosseiros que se entretinham a jogar.
José dirigindo-se ao hospedeiro, começou por informar donde vinha e o que fazia. Os comensais olharam de soslaio aquele simples carpinteiro, vindo duma terra de campónios que, angustiado, pedia guarida. Enfadados com a interrupção, nem sequer lhe ofereceram um lugar a seu lado, apesar de ser bem visível o seu enorme cansaço. José lançou um olhar de preocupação por toda a sala e viu, entre adultos de ambos os sexos e de diversas idades, crianças que dormiam e outras que choravam.
Passou a falar em voz baixa, timidamente, com o proprietário: procurara alojamento por toda a cidade mas não o encontrara devido aos muitos forasteiros que acudiram a Belém; como não podia expor a mulher prestes a dar à luz à promiscuidade daquela sala, preferia um lugar de maior tranquilidade, que garantisse uma serena intimidade, ainda que sacrificando a comodidade. O estalajadeiro respondeu-lhe que, com tais condições, só tinha um estábulo situado numa gruta cavada no sopé da colina das traseiras, onde, naquela altura, só recolhia uma vaquinha.
Maria esperava lá fora, junto do jumento. Estava curvada, com ambas as mãos pousadas no ventre oblongado, com a cabeça inclinada em meditação, enquanto o seu lenço branco galileu tremulava com a aragem fria da noite. José aproximou-se dela, contou-lhe o que observara na hospedaria e a conversa que tivera com o proprietário. Ela teve um gesto de assentimento e ambos seguiram por um carreirinho até ao barranco onde ficava a gruta.
Chegaram. Era um estábulo subterrâneo, igual a outros que havia na colina. Lá dentro jamais entrara um raio de Sol, ali sempre haviam prevalecido as trevas. Maria parou no limiar da caverna e à luz do lampião que o hospedeiro segurava viu a vaquinha e reparou que o interior do estábulo de limpo, só tinha a manjedoura. E era este o aposento reservado ao Filho que estava para nascer!
Os seus olhos ficaram marejados de lágrimas, e o seu coração amoroso sentiu a dor mais preciosa do mundo!
Mas não tardaram a acudir-lhe razões que, iluminando o seu entendimento, depressa a levaram a compreender o suficiente para aceitar aquela extrema humildade.
José, depois de recolher o jumento na gruta, veio para o exterior, observando com preocupação as redondezas da gruta. Se tivesse erguido o olhar, teria visto uma grande e brilhante estrela surgido das montanhas de Moab. Mas não. Apenas o balir das ovelhas na colina despertaram a sua atenção e só a proximidade dos pastores o preocupava.
Era o tempo das geadas. Lá fora fazia frio, mas dentro da gruta a respiração e os corpos dos animais aqueciam o ambiente. Enquanto Maria desembrulhava uns paninhos e algumas roupinhas, José cobria a manjedoura com um braçado de palha nova. Depois, saiu para trazer uma pouca de água de um poço que ficava próximo. Em seguida, acendeu uma fogueira à entrada da gruta e pôs uma panela de água a aquecer. Sentou-se ao lume e ficou a meditar, com os ouvidos atentos aos gemidos de Maria que, em voz baixa, apelava directamente para o Senhor.
A estrela estava cada vez mais próxima e mais brilhante. José continuava meditativo, olhando a água que fervia. De súbito, a caverna ficou toda iluminada com um clarão tão vivo que deixou José assombrado. E quando a luz desapareceu, ouviu que Maria chamava por ele. Aproximou-se, cambaleante, e quando pôde enxergar, viu que Maria envolvia em faixas e reclinava na manjedoura o seu Primogénito. José, já mais próximo, afagou com as mãos calosas e trémulas a pequenina cabeça de Jesus.
Os pastores da colina ficaram alvoraçados com rutilante luminosidade da estrela e comentavam entre si o fenómeno, quando tiveram a visão dum anjo do Senhor. Cheios de assombro e terror caíram por terra e cobriram as cabeças com as mantas. Mas não tardou que ouvissem a voz do anjo que lhes disse:
“Não tenhais medo, pois que vos anuncio uma boa nova, que será de grande alegria para todo o povo: Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo, o Senhor, nesta cidade de David. E eis o que vos servirá de sinal: encontrareis numa das grutas do sopé desta colina, um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.”
E com o voz do anjo, ouviram uma multidão de vozes que louvavam ao Senhor, cantando:
“Glória a Deus nas Alturas
E Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.”
José, tentando ajudar a sua jovem esposa, fitava-a com um olhar aceso de preocupação e de rendida ternura. Ela, vendo-o assim, sorriu docemente e ele percebeu que no seu próprio olhar passara um temor rápido por causa daquela pequenina vida e caiu de joelhos. Maria apercebendo-se da sua enorme confusão, esperou um momento e, sempre sorridente, lembrou-lhe a água que ele aquecera. José trouxe a água e ficou a olhar o primeiro banho do Deus-Menino.
Depois que Maria vestiu a Jesus as roupinhas de algodão e de linho que Ela própria confeccionara, ouviram-se vozes no exterior da gruta: eram os pastores!
Excitados como estavam, falavam todos ao mesmo tempo. E José, que tudo quanto queria era estar sozinho com a família, preparava-se para lhes dizer que se calassem para que a esposa e o Filho pudessem descansar. Mas ficou maravilhado com o que ouviu da boca deles e correu a contá-lo a Maria. Ela olhou o Filho, conservou todas estas coisas e meditou-as no seu coração...
Maria pediu a José que deixasse entrar os pastores. E aqueles homens de peles tisnadas, ao depararem com o Deus Menino, ajoelharam, inclinaram as frontes e, recolhidamente, veneraram o esperado Messias. Depois, saíram da gruta e continuaram a celebrar o Natal com a mesma singeleza e a maior alegria; contentes com a Boa Nova: nascera o Deus da humildade, que vinha “proclamar a libertação dos cativos e mandar libertar os oprimidos”.
Depois, uma estrela foi levar a notícia aos astrónomos (aos sábios) da Pérsia, (da antiga Caldeia) que, como conheciam a Sagrada Escritura, a tomaram como anunciadora do nascimento do Redentor. Por isso, os três Reis Magos (Gaspar, Baltazar e Melchior), guiados pela estrela móvel, chegaram a Belém. E ao encontrarem o Menino com sua mãe, prostrando-se, adoraram-No. E depois, diz a tradição, teriam despejado dos alforges, ouro, incenso e mirra com que procurariam presentear o Messias. Mas bem pouco seria o ouro, porque (quando passados os quarenta dias da Lei) se apresentou no templo para a purificação, a Sagrada Família não tinha com que comprar o cordeiro que era costume oferecer ao sacerdote. E Maria apenas pôde depositar o óbulo dos necessitados: uma parelha de rolinhas mansas.
Tal como os zagais de Belém, também os guardadores de sonhos (os idealistas) acalentam a esperança de verem concretizado o conteúdo da mensagem natalícia. Os que não sonham nem acreditam que ela se concretizará, são: os que vivem ajoelhados perante o Dollar; os que se banqueteiam todos os dias, enquanto outros passam fome; os que nesta quadra fazem despesas supérfluas e dão muitos brinquedos caros aos meninos que já têm tudo, enquanto outras crianças passam sem pão.
Os que “não sabem nem sonham, que o sonho comanda a vida”, são: os soberbos, os iníquos, os novos fariseus e todos os que nunca se guiaram pelas estrelas, mas que se orientam sempre e só pela ambição.

José Gomes Quadrado

Comments:
Conto fantástico ...
 
O espírito do Natal bem presente neste conto. A simplicidade de uns a contrastar com a 'riqueza pobríssima' outros.
Parabéns e um Bom Ano 2008
 
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