21 fevereiro 2007

O Sumagre na Festa da Amendoeira

Crónica das Mós

O SUMAGRE NA FESTA DA AMENDOEIRA

A Associação de Cultura e Recreio “As Mós” vai mais uma vez participar no “Desfile Etnográfico-Alegórico”, a realizar no próximo dia 11 de Março - no âmbito e no fim da quinzena dedicada à XXVI edição da Festa da Amendoeira em Flor e dos Patrimónios Mundiais - que terá lugar na cidade de Foz Côa. E na senda de representações anteriores, desta feita, vai representar uma ou duas tarefas inerentes a uma actividade agrícola e industrial que, em tempos idos, teve uma importância decisiva na economia local e regional. Simbolicamente, o sumagre vai estar presente na festa da amendoeira, sendo certo que o incremento da plantação dela, contribuiu para a progressiva diminuição da importância económica que o sumagre tivera nas Mós, até finais do século XIX.
O sumagre (palavra derivada do árabe “summak”) é um arbusto da família das Anacardiáceas que vegeta e produz nos solos mais secos, pedregosos e mais pobres de húmus de regiões quentes, como os que avultam em terras do nosso concelho que, por razões adiante aduzidas, foi um dos últimos redutos desta planta, outrora abundante na “Terra Quente” de todo o Alto Douro. Efectivamente, em ambas as margens deste segmento do Douro, havia muitos sumagrais, constituindo um ramo de exploração agro-comercial muito importante. Prova disso mesmo está no testemunho de Rui Fernandes que, em 1531/1532, na sua “Descripção do Terreno em Roda de Lamego Duas Léguas”, escrevia: “neste cercohito das sobreditas legoas 15 000 arrobas de çumagre que carregam pera lixboa, e ao algarve, e às ilhas, e pera todo entre douro e minho, e tralos montes, e pera a beira.”(1). Escoamento quase todo ele feito por via fluvial.
A partir de meados do século XVII, com o extraordinário desenvolvimento dos vinhedos, foram desaparecendo os sumagrais na sub-região situada a jusante do famigerado Cachão da Valeira”. Esta era a designação duma terrífica queda de água com cerca de sete metros de altura, provocada por um fragão granítico que atravessava o rio de margem a margem, não permitindo sequer a passagem de peixes na desova, e que constituía, portanto, um inultrapassável obstáculo à circulação de pessoas e bens por via fluvial entre o Douro Superior e o litoral. Assim, enquanto no troço Ocidental do Alto Douro a cultura da vinha se foi expandindo, a montante da Valeira predominavam os solos incultos onde vegetava o sumagre, alguns olivais, sendo a plantação de vinhas restrita, dispersa e relativamente recente.
Em 1756, foi criada a primeira Região Demarcada do Mundo. Trinta e seis anos depois (em 1792), a C.ª Geral das Vinhas do Alto Douro daria por findo o rompimento do Cachão; a partir de 1820, a família Ferreira e outros viriam a aplicar vultosos capitais na construção e/ou reconstrução de quintas como a do Vesúvio, do Vale do Meão, etc., algumas das quais viriam a produzir dos mais famosos vinhos de sempre. E mesmo assim, a integração das terras do nosso concelho na Região Demarcada do Douro foi mitigada e tardia, porque àquele obstáculo natural se juntaram sucessivas e inconcebíveis legislações que não cabe aqui explicitar; interessa apenas acrescentar que esta conjugação de obstáculos determinou que duas sub-regiões, embora com as mesmas aptidões produtivas, tivessem destinos diferentes. E nestas diferenças residiram as razões que fizeram do nosso concelho, não só o último reduto do melhor sumagre português, mas também aquele onde o espectáculo das amendoeiras em flor é mais deslumbrante!
Em finais do século XVIII, D. Joaquim de Azevedo escrevia: “AS MÓS”...fica “em um estreito valle, por onde corre um pequeno ribeiro que vem de Santo Amaro, e junto com outro dito Escorna Bois que vem de Freixo, passa não longe de Murça a buscar o Douro entre altos montes cheios de amendoeiras e sumagre, com boas hortas muita cebola e algum pão.”(2).
Esta descrição espelha o entendimento dos nossos avós, segundo o qual, o sumagre rendia mais do que os cereais, porque estes exigiam chãos fortes e um granjeio mais esmerado e dispendioso; ao passo que o sumagre, sendo um planta agreste nasce em solos pobres e aí se revigora todos os anos. E portanto, era mais rentável porque se desenvolve espontânea e duradouramente, sem precisar de ser cultivado e de outros cuidados a não ser a colheita, a secagem, o trabalho de malhar e a moagem. E sendo estas operações tão simples e muito pouco dispendiosas, eram levados a dar primazia à actividade sumagreira, relegando para segundo plano a cerealicultura. E depois, a sumagre apresenta, ainda, outra vantagem: sendo uma planta perene, evita como poucas a erosão dos solos.
Mas foi perdendo importância à medida que se foi intensificando a plantação da amendoeira no termo das Mós. Esta tão incrementada foi que, na segunda década do século XX, tirante as freguesias transcudanas de Almendra e de Castelo Melhor, as Mós era, de longe, a freguesia que mais amêndoa colhia no nosso concelho. Para se deixar aqui um exemplo, somaram-se as colheitas de 3 anos consecutivos verificadas nas Mós e na então vila de Foz Côa, apurando-se, depois, que nesta apenas se colheram 38,1% da amêndoa produzida nas Mós.(3) Em contrapartida, funcionavam quatro atafonas em Foz Côa e apenas uma nas Mós...
Mas analisemos com algum pormenor as diferentes tarefas desenvolvidas pelos sumagreiros.
Começavam por cortar todas as hastes do sumagre, deixando-lhe apenas as raízes; a rama assim cortada era transportada para as eiras ou para locais empedrados, onde ficava estendida até secar o mais possível; depois de seca, era sujeita à “malhação” com manguais idênticos aos usados nas malhadas dos cereais; seguia-se o seu transporte para uma atafona, casinhoto semelhante ao antigo lagar de azeite e (como ele) era constituída por um pio no centro do qual havia uma trave, firmada perpendicularmente e ligada a ela por um eixo a mó de granito com cerca de 3 metros de diâmetro, movida, normalmente, por muares. O tempo dependido na moagem de cada “piada”, dependia do estado de secura do sumagre. O pó assim obtido era vendido para ser utilizado na medicina, nas indústrias da tinturaria e dos curtumes.
Progressivamente, como ficou dito, foi perdendo a sua importância económica: primeiro, com a transformação dos sumagrais em amendoais e, finalmente, com o aparecimento dum produto químico, seu sucedâneo. Mas apesar de ultrapassado, o sumagre não foi esquecido. E tanto assim é, que volta a marcar presença na Festa da Amendoeira, também agora levado pela sempre grata Associação de Cultura e Recreio “As Mós”.


(1) Collecção de Inéditos de História Portuguesa, Academia Real das Sciencias de Lisboa, Tomo V, 2ª edição, pg. 555.
(2) D. Joaquim de Azevedo, HISTORIA ECCLESIASTICA DA CIDADE E BISPADO DE LAMEGO, pg. 165.
(3) José de Campos Pereira, Economia e Finanças – A Propriedade Rústica em Portugal, Lisboa, 1915, pg. 309.

José Gomes Quadrado


Comments:
Texto com uma beleza histórica fora do comum e sentimentalmente profundo.
 
Fantástico texto. Melhor, só outro texto escrito por esse sentimental MOSENSE, que os amigos de infância recordam para sempre como o "ZECA".
Muitos parabéns. Como é difícil suster as lágrimas, tal a emoção.
 
Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?