26 abril 2011

A Caminho dos Montes - (Paulo Almeida)

Com sono, de partida para o mundo das lembranças, não resisto a deixar no gabinete algumas fotografias tiradas do paraíso, donde se miram as estrelas.
 
É muito suave a brisa que me balouça em carreiro agitado, pelas margens do Douro, errante no traçado de aço que alberga comboios e ilusões. Mais uma vez sigo viajem, na companhia do rio, com o passado e com o presente, com a paisagem circundante, de casas e seus residentes, para um reencontro com a emoção. Ao desfolhar umas folhas velhas imprimidas, desvendo, ainda em silêncio, as palavras de um mosense para quem o tempo, as gentes e todas as outras coisas são evocações a malhar a idade. Cerro os olhos e permito que o pensamento regrida para um qualquer ocaso perdido, em Setembro há muito passado.
Do cimo do monte, o manto retalhado dos campos e o traçado do xisto confere uma magia de diorama à paisagem transmontana. Aqui se percebe, melhor que em qualquer outro lado, a beleza perfeita do delineamento entre o céu e as montanhas. Do verde ao azul, utilizei colorações para retratar este instante, mas a minha paleta de cores talvez não pareça na sua totalidade. O desenho está, contudo, incompleto. Falta, e faltará sempre, lembrar os que descansam, os antepassados, que o incontornável destino e a influência poderosa do tempo não permitiu a vida perdurar.
De costas para o Douro avisto a árvore, outrora mais idosa e frondosa, com a rosácea aberta a espiar arregalada, espantando-se de tudo e sem saber porquê. O Terreiro, largo e sombrio, mostra-se indiferente aos arrufos do sino da igreja, melindrado com o tic-tac do tempo. Daqui, a povoação parece longe, e ela, afinal, está acolá, bem perto, do outro lado da memória. Lá ao fundo, se prestar bem atenção, ouve-se o som dos cascos nas pedras gastas e delicadas, a caminho do fontanário, e no tanque, um grupo de velhas coscuvilham, tagarelando sobre tudo e sobre todos, enquanto esfregam o sabão nos lençóis. E é o som do vento que cria o silêncio, por entre a solidão tranquilizante de um final de tarde quente de Verão, que daqui, junto a Santa Bárbara, senti as Mós, cada vez mais distante, cada vez mais a leste do meu coração e incontornavelmente perto de mim.
E do eloquente topo do outeiro, junto à capela, sempre que o vento sopra irado, as Mós parece uma velha caravela, cuja soberba vela se recorta na ravina ondulação, figura estilizada do xistoso vale. A chuva, consistente, salpica-me a face como se estivesse na proa elevada da valorosa embarcação, e o vento forte colora-me as maçãs do rosto, enquanto a agigantada imensidão se acerca decididamente da vista. As ameaçadoras nuvens cinzentas, carregadas de água vinda do céu, cujo pranto se antevê no rumor, rasa por entre o casario num mar de vida. A aldeia, onde os tectos encardidos se acotovelam na confusão, aglomeram-se densos e compactos, como que formando um corpo só, pronta a saltar borda fora ao primeiro ribombar do trovão.
E enquanto aperto o último botão do meu casaco, deixo cair o inspirador sonho navegador e aligeiro o meu passo rumo ao Terreiro, que a nossa alma nem sempre é feita do desassossego do mar e do ar, também é doce como a vagarosa correnteza do rio que é feito de ouro.

(A caminho de Santa Bárbara)

Para pintar esta jóia de memória, da nossa Mós do Douro, Cristina Quartas foi generosa na intensidade das palavras, pequenas pinceladas de um puro amor pela terra e pelas gentes mosenses. Estendeu as cores do vale de uma forma sensível e emotiva. Cores que pincelam em tons rosados o azul do firmamento transmontano, com predomínio no sentimento e na paixão da terra de nossos queridos avós e pais. Do mesmo modo, Professor Mário Anacleto utilizou toda uma paleta poética, com um toque simples e harmonioso, tão belo que as minhas pobres palavras não conseguem transmitir esse sentimento profundo, o brilho dos meus olhos sempre que retorno e revejo a nossa pequena aldeia encimada pelos montes.


Comments:
Amigo Paulo,
li, reli... apetece-me dizer uma coisa que nunca te disse: és fantástico!
A tua sensibilidade, a tua simplicidade, a tua veia literária, a tua amizade, a tua generosidade... faz de ti um amigo muito especial.
Obrigada pelas tuas palavras e pela tua pura amizade.
Um forte abraço
Maria Cristina Quartas
 
Muito Obrigado querida amiga. Eu é que te agradeço, a tua amabilidade e sentimento. É uma honra ter contribuido em tão significativa obra, pedaço de memórias, acto cvultural na vida de um povo que tudo merece.

Bem hajas.
 
Pelo valor do conteúdo, deste tão rico texto, que nos atira para uma especial sensibilade, aqui demonstrada pelo conterrâneo Paulo Almeida, que consegue transmitir nas suas palavras, o seu profundo sentimento de amor pelas Mós.

Por Maria Helena Quartas Esteves
 
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