06 dezembro 2010

"Clarinda Polido" por Maria Cristina Quartas

Distante já se ouvia o buzinar, e as mulheres juntavam-se no Terreiro.
Lá longe, na estrada, avistava-se a camioneta, que se ia aproximando com o “apitar” em constante sinalização.
- “É o chicheiro?”
- “Não. É o Padeiro. Oh Alda, vem aí o Padeiro.”
- “Da Horta?”
- “Não. É o padeiro de Freixo de Numão”.
Clarinda andava de um lado para o outro e começava a ficar agitada com a movimentação.
Enquanto esticava as mangas e as prendia com as mãos, ou puxava para cima e cruzava os braços, falava sozinha.
A camioneta aproximava-se lentamente para dar tempo às pessoas para descerem as calçadas de terra batida e se juntarem no largo. Passava no lavadouro, na fonte e subia em direcção ao Largo do Terreiro sempre a “apitar”.
O povo ali estava em fila desordenada, mas todos sabiam a sua vez.
Uns pediam um pão de centeio, outros de quatro cantos, outros perguntavam se trazia bolas de azeite.
O pão era como uma broa grande. Convidativo a ser fatiado e a juntar-lhe um naco de queijo de cabra ou a acompanhar com um cacho de uvas doces daquele vale de Sta. Bárbara.
Clarinda aproximava-se da camioneta e, com o olhar vago, parecia querer ver o que ali se passava, fazer sentir a sua presença e sentir um pouco do calor das pessoas.
- “Então Clarinda, a Senhora quer comprar?”
Clarinda esticava as mangas e cruzava os braços: “Merda, merda. Se tivesse pão dava-te”.
O povo ria-se das suas palavras. Mas havia um ar de ternura nos sorrisos naqueles rostos gastos pelo tempo.
-“Oh Clarinda queres pão filha?”
Clarinda encolhia os ombros e respondia: “Gostas dela, gostas dela, gostas?”.
Clarinda fazia parte do Largo do Terreiro. E lembro-me de sempre a ver por lá, quando era pequenita e íamos lá passar as férias de Verão.
De trás para a frente, fazia os seus monólogos, com os braços cruzados e a mão esticada cravando dois dedos no rosto.
Quando passávamos no Terreiro ela aproximava-se de mim e da minha mãe. Parava à nossa frente e ficava a olhar-me. E minha mãe dizia:
- “Olha, esta menina ainda é tua prima. É a Clarinda.”
- “Clarinda, esta menina é minha filha. E é tua prima”
Clarinda sorria, e dizia:
- “Menina, gostas dela, gostas dela, gostas?”
A casa da Clarinda era o Largo do Terreiro e a sua família toda a aldeia.
Hoje tem 59 anos de idade. Fui visitá-la no dia 13 de Maio deste ano a casa de uma sua irmã na Laginha. Estava ela sentada ao lado da sua mãe (Sra. Homera), com 98 anos de idade, ambas muito asseadas a verem televisão.
Estava igual. O mesmo rosto, o mesmo jeito…
O tempo passa e tantas coisas mudam. Mas Clarinda não.
O que será das Mós sem a nossa Clarinda?!...
Uma figura típica, mas uma pessoa querida, estimada e respeitada por toda a aldeia e a quem a ela pertença.
Talvez seja esse carinho, esse afecto tão especial, que a torna sempre igual.
Clarinda tem as suas regras e normas sociais e morais. Não é tosca, não! Apenas não entende o sentido da vida como, afinal, acontece com cada um de nós.
As Mós tem mais valor por ter a Clarinda, isso é certo. Ela faz parte da aldeia e é sempre lembrada com muito carinho e respeito.
E acontece porque, no fundo de todos nós, existe uma Clarinda, onde os monólogos, a agitação, as palavras incompreendidas também existem.
Quantas e quantas vezes nos aproximamos de alguém à espera que nos acarinhem? Quantas e quantas vezes, os nossos desabafos não são palavras soltas, aparentemente sem sentido?
Quantas e quantas vezes, não colocamos a mão no rosto, puxamos as mangas, vagueamos dum lado para o outro em agitação, à procura duma resposta que nunca chega a vir?
Clarinda não sabe de política, nem de matemática, nem de geometria, nem de marketing ou de astrologia…. Mas sabe o sabor da imaculabilidade da vida.
Sabe o que é cheiro da terra, o sabor da água límpida e do ar puro da montanha. Percebe das azeitonas, das amêndoas, das uvas, das laranjas e de outros frutos acabados de colher. Conhece o nascer do sol junto de Santa Bárbara e o pôr-do-sol por trás das Seixas. Reconhece os ecos dos montes das mais belas sinfonias nos sons da natureza. Conhece a Via Láctea, a Estrela Polar, a Ursa Maior, a Ursa Menor e a Cassiopeia… e já viu centenas de estrelas cadentes e reconhece todas as estrelas que cintilam e aquelas que não brilham.
Estou certa que Clarinda nunca sentiu falta de nada e nunca reclamou por não ter outras coisas, senão as que teve e tem na vida. Porque nunca lhe faltou o essencial: o carinho o afecto, respeito de todos e o aconchego consagrado da Mãe Natureza.
Muitos perguntarão: “Afinal, o que tem a Clarinda?”
Talvez a resposta esteja na maior questão e problema que ela colocava enquanto deambulava no Largo do Terreiro com a mão no rosto monologando: “Porque é que as outras pessoas são todas iguais e porque complicam tanto todas as coisas?”
Querida Clarinda quem me dera saber as coisas que tu sabes!
“Gostas dela, gostas dela, gostas?”... Obviamente que a resposta é: “Sim!"

Maria Cristina Quartas
01/Dez/2010
in: http://cquartas.blogspot.com/

Comments:
Alguém que tem esta memória. não residindo nas Mós só pode ser uma pessoa com paixão pela nossa terra.
 
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