07 abril 2009

O Nosso Património Agro-Ecológico

O NOSSO PATRIMÓNIO AGRO-ECOLÓGICO
1ª PARTE

Com este trabalho pretendo adicionar mais informações às que deixei não só no “Bosquejo Histórico das Mós”, mas também noutros trabalhos, criteriosamente compilados na rubrica HISTÓRIA deste exemplar Blog. Venho acrescentar aqui algo que neles não teve cabimento, nomeadamente, contributos para o estudo da evolução da nossa agricultura ao longo de vários séculos.
Para não fazer deste um apontamento longo e fastidioso, resolvi dividi-lo em duas partes: a primeira, abrangendo (“grosso modo”) a possível informação relativa ao intervalo que decorre entre a era de quinhentos e meados do século XVIII; a segunda, compreende os 200 anos seguintes.
Nesta primeira parte, procuro demonstrar as causas naturais e os interesses poderosos que tolheram não só o desenvolvimento da vinha na nossa região, mas também o acesso ao comércio com o litoral e aos contributos socioculturais, necessários ao aperfeiçoamento e progressiva modernização da vida dos nossos antepassados, trazendo à colação o testemunho do vigário de “Asmos”, Domingos do Amaral Tavares, através de alguns itens do seu relatório, datado de 24 de Março de 1758, em resposta a quesitos ordenados pelo poderoso secretário de estado do Negócios do Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo.

Até meados do século XVII, os nossos antepassados partilharam o mesmo património agro-ecológico com todas as populações que viviam no actualmente designado Alto Douro, ou seja, na faixa ribeirinha que se estende de Barqueiros (localidade situada a 10 km a jusante da Régua) até à Barca d’Alva, abrangendo vales, ribeiros e os cursos inferiores dos rios afluentes do Douro, em cujas margens avultavam solos que reflectiam a imagem do rio selvagem e indomável que este rio foi, até à construção das barragens hidroeléctricas. Com efeito, naqueles recuados tempos, em ambas as margens, tirante um ou outro casal ou quinta, tão raros como dispersos e incultos, vegetavam zimbros, carvalhos, sobreiros, carrascos e zambujeiros, no meio de matos espessos, com silvados e giestais impenetráveis, "onde se acoitavam o lobo, o javali e o gato montês.” A maior parte das terras aráveis estavam "a monte, medrava nelas o mato que só às vezes se queimava para semear centeio" ou se arrancava para “desafogar ou plantar o sumagre”. Segundo a mesma fonte, “raros eram os lavradores que colhiam 3 ou 4 pipas de vinho”. (1)
No que concerne à arboricultura, ela só tomou algum incremento a partir do século XVI, já que só nas duas últimas décadas deste século teria tido início a plantação mais intensiva da oliveira, o que não aconteceu com a amendoeira, embora a existência de ambas aqui fosse plurissecular, porque encontraram em diversas terras do nosso actual concelho os solos mais propícios. Aquela gerando o mais fino dos azeites e a amendoeira produzindo com muita regularidade um fruto considerado da melhor qualidade. Mesmo assim, a expansão do plantio desta árvore foi sendo retardado, porque os agricultores de outrora, os nossos antepassados, durante muito tempo, deram preferência à cultura do sumagre, nem sempre pelas melhores razões económicas.
Este, aquele e outro arvoredo (que oportunamente será referido) integram uma vegetação característica duma zona ecológica do tipo sub-mediterrâneo, devido á sua localização geográfica, ou seja, ao facto da referida faixa ribeirinha ficar encaixada entre dois sistemas: um, montanhoso e quase todo granítico e o outro, formado por rosários de montes xistosos e envolvido por aquele.
A rocha granítica do referido sistema montanhoso, em chegando ao Santuário de S. Salvador do Mundo desce e atravessava a garganta da Valeira, formando aqui uma terrífica catarata (com mais de sete metros de altura), ingressando, na margem direita, no flanco alcantilado e escarpado que, contornando uma volta do rio, se ergue a pique, atingindo várias centenas de metros de altitude até ao planalto de Ansiães.
Antes da sua demolição, aquele enorme fragão, o famigerado Cachão da Valeira, além de impedir a passagem dos peixes na desova, constituiu um grande obstáculo à circulação de pessoas e bens, por via fluvial, a única ligação directa não só entre o Douro Superior e a outra sub-região situada a jusante, mas também (e principalmente) com o litoral. Aquele afloramento granítico interpunha-se, a montante, entre as margens do rio e as terras aráveis, numa extensão que não ultrapassaria os 15 ou 16 km, mas que, além do mais, viria a revelar-se como um dos factores determinantes para que duas sub-regiões, embora com as mesmas aptidões produtivas, viessem a ter destinos diferentes.
A raiz desta diferença existia desde a formação da crosta terrestre, e consistia no seguinte: enquanto produtores e consumidores do “Baixo Corgo” e “Cima Corgo” (designações medievais), usufruindo da secular ligação ao litoral através da via fluvial, mantiveram o acesso à circulação de pessoas e bens e aos contributos necessários ao seu aperfeiçoamento e progressiva modernização; os que residiam a montante daquele obstáculo natural mantiveram-se fechadas ao litoral, sendo obrigados a virarem-se para o interior, ligados, sobretudo, às sedes das respectivas comarcas (Pinhel; Trancoso e Pesqueira) e secularmente condenados a uma forma de vida mais tradicional.
Esta diferença passaria a ter maior relevo a partir da segunda metade do século XVII, quando teve início o desenvolvimento da exportação do vinho generoso para a Grã-Bretanha. Naqueles dois troços (primeiro no “Baixo Corgo” e depois no “Cima Corgo”) a plantação de vinha começou a expandir-se, abrangendo as encostas ribeirinhas do Douro e dos cursos inferiores dos seus afluentes. O vinho cheiroso de “Riba do Doyro”, o nosso “vinho fino”, passou a ser designado “Port Wine” ou “Vinho do Porto”: data de 1678, o primeiro registo alfandegário de Vinho do Porto.
A crescente propensão para a monocultura da vinha foi tal que, segundo António Barreto, nas duas últimas décadas do século XVII, “a média anual de exportação de vinhos do Douro foi subindo de 500 ou 600 pipas para cerca de 7 000”!!! (2)
Toda esta enorme quantidade de vinho era transportada por barcos rabelos, tendo como destino os armazéns de Gaia, a barra do Douro e por fim a exportação. Portanto, quando em 1703, foi assinado com a Inglaterra o tratado de Methuen, já ali a expansão da viticultura tinha dado lugar a um efectivo regime de monocultura, o qual viria a ser reforçado entre 1730 e 1740.
Maior do que este crescimento foi a ganância de alguns grandes produtores que, no fim da primeira metade deste século, passaram a adulterar o vinho fino, e à degradação da qualidade viria a juntar-se a especulação dos exportadores ingleses, acontecimentos que conduziram ao descrédito do Vinho do Porto, a uma crise que atingiu o auge em 1754. A ela viria a atalhar o futuro Marquês de Pombal, criando, em 1756, a Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro, tendo como principais accionistas os maiores produtores dos dois segmentos onde se verificava o exclusivismo da vinha, quase todos eles pertencentes à nobreza rural ou à grande burguesia urbana, mormente sedeadas no Porto. Os seus interesses e influências foram determinantes na concessão das “prerrogativas majestáticas” que o fundador atribuiu à Companhia. Alguns deles viriam, sucessivamente, a administrar e a fiscalizar o monopólio da produção e da venda dos vinhos para exportação.
Foram estes que decidiram, em 1757/58, que a demarcação da região, no sentido longitudinal, não iria além da interrupção provocada pelo Cachão da Valeira. Foi a primeira de sucessivas decisões que levariam à exclusão do Douro Superior, durante um século e meio, da Primeira Região Demarcada do Mundo.
No acima citado relatório do pároco das Mós não é referida esta discriminação, mas faz alusão aos danos provocados à economia local e regional o facto dos barcos não poderem carregar “mantimentos e fazendas que vem do Porto e juntamente levarem” das Mós “pão, vinho, azeite, sumagre e os mais Frutos que na dita cidade se gastam.” (3)
Como podemos verificar, a amêndoa não foi incluído neste rol de produtos eventualmente negociáveis, ao contrário do sempre referido sumagre. Ela só aparece referida na lista dos “Frutos da terra que os moradores recolhem em mayor abundância”, surgindo depois do centeio, da cevada, das lentilhas (garrobas) e antes dos figos e do cebolo. (4)
Mais adiante, o relatório do padre Tavares refere o que os mosenses semeavam nas olgas situadas nas margens do Douro: pão, linho, cânhamo, milho e botelhas. E acrescenta: “e nas testadas das ditas olgas há oliveiras, amendoeiras, figueiras, e algumas vinhas, e outras terras incultas de montados de gestas, peorneiras, rosmanos, quarrascos, sobreiros, e zambujos.” (5)
Apesar do rompimento do fragão do Cachão da Valeira ter terminado em 1792, e deste ponto ter ficado completamente navegável a partir de 1807, as sucessivas demarcações subsidiárias continuaram a deixar “fora de marcas” as vinhas situadas a montante do talvegue da Valeira.
Nesta altura, já há mais de meio século que a freguesia das Mós deixara de pertencer ao concelho medieval de Numão e passara a integrar o novo concelho de Freixo de Numão. Os maiores proprietários daqui eram os que detinham as melhores terras agrícolas das Mós. Depois, apesar deste concelho ter ficado fora das referidas linhas de demarcação, estes grandes proprietários “voltaram-se para o cultivo e intensificação da vinha.” (6). E porque os vinhos das Mós, tal como os de Custoias e os de Freixo, eram os melhores deste concelho e tão bons como os produzidos a jusante da Valeira, vieram a ser comprados pelos grandes vinicultores do “Douro vinícola”, armazenados em Gaia e depois exportados, pois estes grandes vinicultores não tinham dificuldades em conseguir as indispensáveis guias para os fazerem entrar no circuito legal de exportação. E os lucros assim obtidos concorreram decisivamente para que fossem construídos edifícios senhoriais; tais como: a Casa Grande, a Casa da Câmara, (entre outros) em Freixo e até o “Chalé” das Mós.

(1) O Douro nos Séculos XVII e XVIII, in Estudos Durienses, Imprensa do Douro, Régua, 1937, vide p.1 e 2.
(2) Douro, António Barreto, edições INAPA, 1993, vide pág. 91.
(3) Antigo Concelho de Freixo de Numão – Memórias Paroquiais do Séc. XVIII, Lisboa, 1974, vide pág. 175.
(4) Idem, idem, idem, vide pág. 170.
(5) Idem, idem, Idem, vide pág 176.
(6) Idem, idem, idem, vide pág. 8.
José Gomes Quadrado

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