20 outubro 2008

As Mós e os nós II

As Mós e os nós II


(A meus avós)

Ouve-se já ao longe a desconcertante ladainha dos chocalhos 
ecoando ancestrais refrões pelo dorso do vale 
 Por detrás dos montes ruminando ladeiras de íngremes contornos 
cabras e ovelhas seguem o pastor na sua demanda de aconchego 
 Da varanda perscruto com o olhar os últimos raios do poente esmagarem-se contra as lajes de xisto 
Nas hortas formigas humanas afadigam-se em derramar o precioso líquido por sementeiras 
que hão-de germinar futuros 
 (Um perfume a terra sedenta evola-se no ar e funde-se com o cheiro da flor da laranjeira!) 
 Tímida a noite cai sobre o minúsculo povoado construindo novas metáforas e lendas 
a uma aldeia enamorada por adamastores vestidos de urze e de tojo 
 Na fonte perfilam-se já - quais imberbes mancebos!- os cântaros com a sua farda azul uniformizada
 Içados à cabeça como mastros de um navio cada um tem o seu porto e o seu ritmo 
a sua amurada e a sua melodia 
 No terreiro geografia de todos os reencontros e despedidas chão fremente de risos e de lágrimas 
alfobre de alegrias e tristezas os homens dão largas à conversa 
 Por todo o povoado se rumoreja - nas toscas e desalinhadas pedras da calçada 
nos alpendres das casas - até o próprio luar enrubesce quando escuta certos magistérios! 
 Rendilha-se o diálogo com a ventura de quem desfolha um álbum de fotografias 
amarelecidas pelo sol impiedoso 
 Nas Mós aldeia de nós laços afectos e múltiplos dialectos 
a argila que molda as rugas do tempo é a mesma com que se edifica a morada da candura 
 Ainda hoje sinto o afago dessas raízes profundas e indecifráveis 
com que o majestoso e omnipresente olmo me prendeu à terra 
 É quando o vento norte me sussurra enledos na copa dos cabelos 
que ouço a voz de meus avós crepitar ao meu ouvido 
- é nesse preciso instante que tudo faz sentido 

Vitor Solteiro, 26.06.07
 (aarquitecturadaspalavras.blogspot.com)
____________________________
"Há palavras que nos beijam como se tivessem boca." (Alexandre O' Neill)

Comments:
Que belo poema!
Amigo Vitor para quando uma visita às Mós? temos muito para conversar sobre as Mós.
Acho que você tem muito a dar às Mós.
 
Não tenho dúvidas, caro Vitor Solteiro, é um poema lindissimo a honrar o sentimento que os mosenses nutrem pela sua terra.
E como diz nessa frase que escolheu para o seu site: -"Há palavras que nos beijam como se tivessem boca", nestas, assim acontece.
Parabéns
 
É com a emoção à flor da pele que re-leio estas palavrinhas...

Elas fazem mover as indestrutíveis Mós da memória...

Um abraço ao Carlos Pedro.

Ao José Alberto e ao João Ferreira, o meu agradecimento pelas amavéis palavras...

Que as Mós continuem incessantemente a gizar futuros!...
 
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